ARS CURANDI
Há mais ou menos 30 anos atrás( quase 31!) eu me formava
médica.Na verdade, antes mesmo de sê-lo, eu vivia a profissão
através do meu pai.Meu pai, médico, psiquiatra, professor do
HC USP, simpatizante de de ideias socialistas, mostrava-nos que o
trabalho médico não era fonte de enriquecimento material,
mas um dever que deveria ser HONRADO junto à sociedade,
através do trabalho quase artesanal, compreendendo-se a origem
do adoecimento mental e físico não só na genética nem só na
psicologia dos doentes, mas na forma como estes doentes eram
social e politicamente inseridos na sociedade, o que agravava
em maior ou menor grau suas possibilidades e prognósticos.A
universidade nunca me ensinou ética: isto eu aprendi em casa.
Não a "ética" dos que usam desta palavra profunda para
referir-se à seus interesses pessoais.A palavra ética, foi-me
sendo ensinada pouco a pouco na convivência com pais
honrados, trabalhadores incansáveis, que lidavam com o sofrimento
físico e social das pessoas e que tinham uma visão
HUMANISTA em suas práticas diárias.. Minha mãe, uma
assistente social , trazia-nos noções sobre a situação social
dos doentes que ela atendia no "dispensário de tuberculose",
aquela época uma doença bastante frequente no Brasil:doença
basicamente dos pobres! Em casa, não soubemos nunca o que era
"enriquecimento " material , pois medicina, exercida como
trabalho e não como EMPREENDIMENTO nem como NEGÓCIO, não gera
riqueza.Mas em compensação, crescemos com um olhar muito
crítico acerca da sociedade injusta em que vivíamos, que nos
mostrava por um lado, a face bonita , rica, onde tudo
funcionava bem mas também revelava o lado "feio", triste e
injusto das DESIGUALDADES SOCIAIS, do Brasil. De fato, nunca
passamos necessidades materiais nem privações emocionais na
infância, tínhamos uma vida tranquila , de classe média. Com
frequência éramos levados , pelo meu pai, a refletir sobre
a situação politico-econômico-social da época: os ANOS DE
CHUMBO da ditadura ..Falava-se na VINDA DO COMUNISMO na tv
como se extraterrestres estivessem para invadir o mundo e o
Brasil teria que se defender do "mal". Meu pai apenas
limitava-se a dizer-nos que não era nada disto e que um golpe
de Estado estaria por vir.Foi assim que tudo, do dia para a
noite emudeceu.Em casa meu pai pouco falava sobre a situação
política , mas algumas vezes íamos visitar na Praia Grande o
famoso psiquiatra e psicanalista comunista, Osório Cesar, grande
amigo de meu pai, e lá ficavam horas conversando, Osório,
fumando seu cachimbo , meu pai falando sobre política e eu
brincando , mas sempre atenta à conversa , tentando entender o
que falavam .Eu entendia , pelo que ouvia, que havia outras
maneiras de se viver no mundo, onde todos poderiam desfrutar
de saúde e educação, de forma igualitária .. Porem , parecia-me
tudo tão longínquo! O tempo passou e , já na
Universidade, fui percebendo pouco a pouco que na verdade tudo
conspirava para que fôssemos esquecendo o lado mais humano da
profissão: tudo ensinado de modo destacado de uma prática
social: teoria de um lado, pessoas doentes do outro e nós
estudantes no meio, tentando aprender a arte de curar...A
arte... Essa que não se ensina( mas tem que ser aprendida) é
a única possibilidade que se nos apresenta, para superar a
lógica capitalista em que vivemos, onde o doente é visto como
forma de lucro para as indústrias farmacêuticas e prejuízo
para as medicinas de grupo .O médico, este ser que não é, se
não existir o contraponto do doente, é o artista que
lapida a pedra bruta(doente) em busca do brilho(
saúde). Trabalho de ourives, de artesão , de artista que domina
o cinzel, as tintas, e com criatividade aliado à teoria e
técnica, busca o diálogo entre o céu e a terra.Uma
possibilidade perigosa esta , que transtorna muitas
cabeças,fazendo-as muitas vezes deixar de lado a grandeza do
artista para se ter a ilusão de SER DEUS. Neste ponto,
muitas vezes nos deixamos seduzir, numa sociedade do espetáculo
como a nossa, em que o PARECER SER tem muito mais
importância do que SER realmente. A grande ilusão de quem ,
nesta sociedade detem o poder do saber, é que esse poder
seja ilimitado.Contrariar esta ilusão, como vejo agora
acontecer, quando da vinda dos médicos cubanos , para trabalhar
em áreas consideradas de risco, sem acesso à médicos, é
tremendamente doloroso.Mudar a lógica capitalista na área da
saúde , focando a "MEDICINA DOS POBRES",é como deixar de se
guiar pelo princípio do prazer e pela primeira vez ter que
ser abraçado o princípio da realidade.Um verdadeiro parto à
fórceps, que muitos profissionais , tendo que abdicar de
suas convicções rígidas, inflexíveis e tradicionalistas, estão
sendo obrigados a VIVENCIAR .Se medicina é ciência e arte,
que a primeira não engesse a nossa liberdade de criar e que,
tal como nos ensinou Hipócrates,essa arte seja , por conta
de atitudes médicas mais HUMANAS E NÃO INDIVIDUALISTAS,
exercida por nós todos, com boa reputação entre os homens e
para sempre.
Marcia Tigani_ médica, psiquiatra, em São José dos Campos. _ 04/09/2013
Há mais ou menos 30 anos atrás( quase 31!) eu me formava
médica.Na verdade, antes mesmo de sê-lo, eu vivia a profissão
através do meu pai.Meu pai, médico, psiquiatra, professor do
HC USP, simpatizante de de ideias socialistas, mostrava-nos que o
trabalho médico não era fonte de enriquecimento material,
mas um dever que deveria ser HONRADO junto à sociedade,
através do trabalho quase artesanal, compreendendo-se a origem
do adoecimento mental e físico não só na genética nem só na
psicologia dos doentes, mas na forma como estes doentes eram
social e politicamente inseridos na sociedade, o que agravava
em maior ou menor grau suas possibilidades e prognósticos.A
universidade nunca me ensinou ética: isto eu aprendi em casa.
Não a "ética" dos que usam desta palavra profunda para
referir-se à seus interesses pessoais.A palavra ética, foi-me
sendo ensinada pouco a pouco na convivência com pais
honrados, trabalhadores incansáveis, que lidavam com o sofrimento
físico e social das pessoas e que tinham uma visão
HUMANISTA em suas práticas diárias.. Minha mãe, uma
assistente social , trazia-nos noções sobre a situação social
dos doentes que ela atendia no "dispensário de tuberculose",
aquela época uma doença bastante frequente no Brasil:doença
basicamente dos pobres! Em casa, não soubemos nunca o que era
"enriquecimento " material , pois medicina, exercida como
trabalho e não como EMPREENDIMENTO nem como NEGÓCIO, não gera
riqueza.Mas em compensação, crescemos com um olhar muito
crítico acerca da sociedade injusta em que vivíamos, que nos
mostrava por um lado, a face bonita , rica, onde tudo
funcionava bem mas também revelava o lado "feio", triste e
injusto das DESIGUALDADES SOCIAIS, do Brasil. De fato, nunca
passamos necessidades materiais nem privações emocionais na
infância, tínhamos uma vida tranquila , de classe média. Com
frequência éramos levados , pelo meu pai, a refletir sobre
a situação politico-econômico-social da época: os ANOS DE
CHUMBO da ditadura ..Falava-se na VINDA DO COMUNISMO na tv
como se extraterrestres estivessem para invadir o mundo e o
Brasil teria que se defender do "mal". Meu pai apenas
limitava-se a dizer-nos que não era nada disto e que um golpe
de Estado estaria por vir.Foi assim que tudo, do dia para a
noite emudeceu.Em casa meu pai pouco falava sobre a situação
política , mas algumas vezes íamos visitar na Praia Grande o
famoso psiquiatra e psicanalista comunista, Osório Cesar, grande
amigo de meu pai, e lá ficavam horas conversando, Osório,
fumando seu cachimbo , meu pai falando sobre política e eu
brincando , mas sempre atenta à conversa , tentando entender o
que falavam .Eu entendia , pelo que ouvia, que havia outras
maneiras de se viver no mundo, onde todos poderiam desfrutar
de saúde e educação, de forma igualitária .. Porem , parecia-me
tudo tão longínquo! O tempo passou e , já na
Universidade, fui percebendo pouco a pouco que na verdade tudo
conspirava para que fôssemos esquecendo o lado mais humano da
profissão: tudo ensinado de modo destacado de uma prática
social: teoria de um lado, pessoas doentes do outro e nós
estudantes no meio, tentando aprender a arte de curar...A
arte... Essa que não se ensina( mas tem que ser aprendida) é
a única possibilidade que se nos apresenta, para superar a
lógica capitalista em que vivemos, onde o doente é visto como
forma de lucro para as indústrias farmacêuticas e prejuízo
para as medicinas de grupo .O médico, este ser que não é, se
não existir o contraponto do doente, é o artista que
lapida a pedra bruta(doente) em busca do brilho(
saúde). Trabalho de ourives, de artesão , de artista que domina
o cinzel, as tintas, e com criatividade aliado à teoria e
técnica, busca o diálogo entre o céu e a terra.Uma
possibilidade perigosa esta , que transtorna muitas
cabeças,fazendo-as muitas vezes deixar de lado a grandeza do
artista para se ter a ilusão de SER DEUS. Neste ponto,
muitas vezes nos deixamos seduzir, numa sociedade do espetáculo
como a nossa, em que o PARECER SER tem muito mais
importância do que SER realmente. A grande ilusão de quem ,
nesta sociedade detem o poder do saber, é que esse poder
seja ilimitado.Contrariar esta ilusão, como vejo agora
acontecer, quando da vinda dos médicos cubanos , para trabalhar
em áreas consideradas de risco, sem acesso à médicos, é
tremendamente doloroso.Mudar a lógica capitalista na área da
saúde , focando a "MEDICINA DOS POBRES",é como deixar de se
guiar pelo princípio do prazer e pela primeira vez ter que
ser abraçado o princípio da realidade.Um verdadeiro parto à
fórceps, que muitos profissionais , tendo que abdicar de
suas convicções rígidas, inflexíveis e tradicionalistas, estão
sendo obrigados a VIVENCIAR .Se medicina é ciência e arte,
que a primeira não engesse a nossa liberdade de criar e que,
tal como nos ensinou Hipócrates,essa arte seja , por conta
de atitudes médicas mais HUMANAS E NÃO INDIVIDUALISTAS,
exercida por nós todos, com boa reputação entre os homens e
para sempre.
Marcia Tigani_ médica, psiquiatra, em São José dos Campos. _ 04/09/2013
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